Muitos clássicos da literatura parecem intimidantes para a maior parte dos leitores atuais, e razões supostamente não faltariam para esse distanciamento. Em primeiro lugar, obras como Hamlet e 'Rei Lear', de Shakespeare, ou a 'Odisseia', de Homero, ou mais atuais, como o 'Ulysses', de Joyce, falariam de outros tempos, mundos tão distantes que parecem pertencer a outro planeta ou galáxia. Eles não mencionam as maravilhas da tecnologia, os avanços da ciência e todos os encantos triviais que nos fazem acreditar que vivemos no melhor momento da história. Esses clássicos soam como verdadeiros tratados, só acessíveis a especialistas e estudiosos.
Em segundo lugar, são livros grandes. O 'Ulysses', de Joyce, foi considerado durante muito tempo uma espécie de desafio digno dos maratonistas. As cerca de 1.500 páginas do romance exigiriam (e de fato exigem) doses extras de fôlego e tempo – bastante tempo –, a ponto de sua leitura ser motivo de gracejo entre os intelectuais e literatos no Brasil, nos anos 80. Naquela época, dizia-se que só passando uma temporada na prisão é que alguém conseguiria dar conta do livro.
Talvez nem seja preciso ir tão longe para citar outros clássicos da literatura vistos como desafios para os apressados e dispersivos leitores atuais. Na lista caberiam o 'Doutor Fausto', de Thomas Mann, 'O Som e a Fúria', de William Faulkner e 'O caminho de Swann', de Marcel Proust. São romances que surpreenderam com narrativas ousadas para sua época e, por isso, representam marcos na arte romanesca. Pedem leitores à altura de seus desafios estéticos.
Como trazer esses clássicos para os dias de hoje? A prestigiosa Penguin Books acenou com uma ideia. Num livro pequeno, porém de título longo, a editora londrina propõe recontar os clássicos e outros romances contemporâneos por meio da linguagem do twitter. O livro 'Twitterature: the world´s greatest books in twenty tweets or less' (Twitteratura: os maiores livros do mundo em vinte tweets ou menos), da dupla Alexander Aciman e Emmett Rensin, ‘tuita’ romances de diferentes estilos e épocas, como 'Pé na estrada', de Jack Kerouac, 'Anna Karenina', de Tolstói, 'O velho e o mar', de Ernest Hemingway, 'O apanhador no campo de centeio', de Salinger, 'A metamorfose', de Kafka, além dos já mencionados nos primeiros parágrafos deste texto.
Aciman&Rensin expõem suas razões para apostar no twitter como o caminho para aproximar leitores dessas e outras obras, listadas ao sabor de suas escolhas pessoais, sem explicarem os critérios:
“É uma tragédia que tantas pessoas modernas achem as grandes obras inacessíveis, esmagadoras e, talvez, até mesmo chatas. Não é defeito de caráter, nem ausência de alguma habilidade especial delas, que as fazem se comportar assim. Pelo contrário, esses grandes textos, eternos como devem ser, estão, em sua forma atual, ultrapassados. Quem, a não ser universitários, eremitas e discípulos de John Ludd, pode se aventurar neles esperando compreendê-los? Eis o que procuramos, com nossos humildes esforços, remediar.”
Talvez a palavra chave aí seja ‘remediar’. Será que resumir todas essas obras em 20 ‘tuitadas’ de 140 toques é o ‘remédio’? Tanto suor dos autores condensado em parca meia dúzia de palavras? Será que há um humor sutil na exposição de motivos da dupla? O charme e a riqueza dessas obras estão exatamente no desafio de percorrê-las, palavra a palavra, frase a frase, parágrafo a parágrafo, num corpo a corpo de descoberta e prazer. Não ‘queimando’ etapas para torná-las mais acessíveis.
Eis uma amostra da solução ‘tuitável’ que Aciman&Rensin acharam para o romance de Salinger, 'O apanhador no campo de centeio', na qual tentam emular a linguagem coloquial do autor:
“Encrencado pela última vez. Estão me mandando embora da velha escola! Ainda não vi um diabo de um cavalo! (Risos)!”
“Ainda cercado de mentirosos. Aposto que todos vocês também são mentirosos. Ugh.”
“Acho que tenho câncer na boca. Eu os manterei atualizados.”
A graça reside em o leitor conhecer o original e, a partir daí, fazer suas comparações, sem deixar de exibir uma nesga de sorriso, já que o resultado é mais próximo do risível do que de uma real compreensão da obra. Funciona mais como uma versão hiperlight do romance, contada no formato twitter, do que qualquer outra coisa.
A seleção dos autores pretende-se democrática e atemporal. “Tuitados” estão os romances 'Lolita, de Vladimir Nabokov, 'The crying of lot 49', de Thomas Pynchon, 'Moby Dick', de Herman Melville, 'O grande Gatsby', de Scott Fitzgerald e 'O código Da Vinci', de Dan Brown, assim condensado pelos autores: “Indo para Paris! Um homem está morto e a polícia sabe que só meus conhecimentos superhumanos de criptologia podem resolver isto.”
A partir desses exemplos de ‘twitteratura’, podemos nos sentir tentados a exercitar nossa capacidade de síntese em 140 toques e imaginar algumas joias da produção romanesca nos últimos dez anos. Podemos pensar em 'Desonra', de Coetzee, 'Os detetives Selvagens', de Bolaño e 'Reparação', de Ian McEwan. Ou trabalhar a ideia a partir de nossos próprios cânones. Memórias póstumas de 'Brás Cubas', de Machado de Assis, pode ser um começo e tanto.
Seja que tipo de livro for, não importa estilo, época ou lugar que represente na história da literatura, tudo não passaria de um exercício de síntese. É como jogar xadrez com as palavras, só que mais divertido. Ou pensar a narrativa literária a conta gotas, cuidando para atingir a medida exata. Soa OK como treino para cortar excessos e gorduras indesejadas, mas poderá valer como regra ou tendência para a literatura? Logo a literatura, cuja regra essencial é não aceitar regras.
Vou tentar concluir em até 140 toques, lá vai: a ‘twitteratura’ está mais para ‘twitter’ do que para ‘literatura’. Mais para a linguagem da publicidade do que para a poesia.
É, consegui.
Esse artigo foi originalmente publicado em Plurale em Site.
Paulo Lima é colunista de Plurale e editor da revista virtual Balaio de Notícias.